domingo, 11 de setembro de 2011

Significado e Significante em Archimboldi: 2666

Dobrar e desdobrar. Multiplicar por 2 e desfazer o esforço com um novo esforço, aquele que busca recuperar o plano liso, mas não consegue apagar o vinco da superfície. Dobrar, no final das contas em nada implica em aumento, em dizer que há algo mais. Dobrar pode simplesmente partir de uma redução. Um quadrado de papel, quando rasgado ao meio num corte diagonal, se transforma em 2 triângulos. Era um, transformou-se em dois. Desdobrar é tarefa mais difícil, pois nem sempre conta com a possibilidade de algum raciocínio espúrio que permite, ainda que por um momento de desatenção, dizer que cortar um quadrado e fazer dois triângulos é, de alguma forma, dobrar. Desdobrar implica não só em desfazer a forma vincada – ainda que sem perder o vinco; atento ao momento do corte, que deve ser evitado -, mas em desdobrar-se em esforço do tipo que se aplica ao irmão do filho pródigo, sempre multitarefa.




A tarefa do significante e do significado trilha este tipo de equívoco em que a dobra sugere falácia e a desdobra permite o esforço. É mais ou menos assim que, na simulação da relação impetuosa entre a ficção e a filologia, que a semiologia parece encontrar espaço. Algum espaço. Um espaço pequeno e cada vez menor e, numa dobra constante que deforma a superfície até vira ser um poliedro maciço, cada vez mais confortável. Isto porque faz um implicar no outro, cuja atividade crítica de desfazer se torna cada vez mais cansativa e dispendiosa. E a cada palavra escrita aqui, entenda-se: dobra que, na verdade é também sinônimo de desdobrar.




2666




Às vezes era Liz Norton que ligava para Espinoza e perguntava por Morini, com quem havia falado no dia anterior e que havia achado um pouco deprimido. Nesse mesmo dia Espinoza telefonava a Pelletier e lhe informava que segundo Norton a saúde de Morini havia piorado, ao que Pelletier respondia ligando imediatamente para Morini, lhe perguntando sem rodeios por seu estado de saúde, rindo com ele (pois Morini procurava não falar nunca a sério sobre esse tema), trocando algum detalhe sem importância sobre o trabalho, para depois telefonar à inglesa, à meia-noite, por exemplo, após retardar o prazer do telefonema com um jantar frugal e gostoso, e lhe assegurar que Morini, dentro do que se podia esperar, estava bem, normal, estável, e que aquilo que Norton havia tomado por depressão não era mais que o estado natural do italiano, sensível às mudanças climáticas (talvez em Turim fizesse um dia feio, talvez Morini naquela noite houvesse sonhado vá saber que tipo de sonho horrível), encerrando de tal maneira um ciclo que no dia seguinte ou dois dias depois tornava a recomeçar com um telefonema de Morini a Espinoza, sem pretexto algum, um telefonema para cumprimentá-lo, simplesmente, um telefonema para falar um pouquinho e que se consumia, indefectivelmente, em coisas sem importância, observações sobre o tempo (como se Morini e o próprio Espinoza estivessem se apropriando de alguns dos costumes dialógicos britânicos), recomendações de filmes, comentários desapaixonados sobre livros recentes, enfim, uma conversa telefônica mais para soporífera ou pelo menos desanimada, mas que Espinoza escutava com insólito entusiasmo ou com carinho, de qualquer modo com civilizado interesse, e que Morini estendia como se nela jogasse sua vida e a que se seguia, ao cabo de dois dias ou de algumas horas, um telefonema mais ou menos nos mesmos termos que Espinoza dava a Norton, e que esta dava a Pelletier, e que este retribuía a Morini, para voltar a recomeçar, dias depois, transmutado num código hiperespecializado, significado e significante em Archimboldi, texto, subtexto e paratexto, reconquista da territorialidade verbal e corporal nas páginas finais de Bitzius, que no caso era o mesmo que falar de cinema ou dos problemas do departamento de alemão ou das nuvens que passavam incessantes, da manhã à noite, pelas respectivas cidades de cada um.” (2666;25-26, tradução de Eduardo Brandão)




Nunca havia lido muito de Roberto Bolaño. Com isso quero dizer que nunca li mais que as 35 primeiras páginas de Nocturno de Chile, pela edição da Anagrama. Não sei o que fazer em sua presença ou, para os mais céticos, ao lê-lo. No entanto, devo fazê-lo. Assumi a responsabilidade de fazê-lo mediante a correspondência que mantenho com outros tantos envolvidos na decodificação e invenção do código literário que, sabedores do que fez o chileno Bolaño, me deixam na situação peculiar de saber tanto sobre Bolaño quanto sei de Benno von Archimboldi, autor de D´Arsonval, O jardim, A máscara de couro, O tesouro de Mitzi, Bifurcaria bifurcata, Rios da Europa, A perfeição ferroviária, O bas-fond de Berlim, Leteia e Bitzius. Aos meus olhos, envolto por tudo aquilo que posso lembrar, esses romances que desconheço a existência senão entre a capa e a contracapa de 2666 têm o mesmo valor que Amuleto, Os detetives selvagens, Estrela distante, A pista de gelo e Putas Assassinas. São expressões postas em itálico cujo sentido, afora o de oferecer um título a romances ou livros que podem ou não servir para a compreensão de algo – ainda que ficcionais -, não me dizem nada ou muito pouco. Dão liberdade demais a quem deveria estar enclausurado. Archimboldi e Bolaño para mim equivalem quase que completamente. Quase. Não perfazem, os dois, uma dobra. Pelo visto, o esforço de Bolaño se desdobra em Archimboldi, mas não estou seguro. Por isso me envolvo num esforço de correspondência ao mesmo tempo em que faço a tocaia a Archimboldi, a Bolaño, segundo as exigências que 2666 me fará, novato desvendando algo que não sei o que é. Seguir Archimboldi será, de uma outra forma, perseguir um Roberto Bolaño que responsabilizarei pelo que eu encontrar – sendo Bolaño quem for, ainda que Archimbaldi.




(aguardo o telefone tocar de Salvador)

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