terça-feira, 13 de setembro de 2011

Bolaño aos poucos

“Recebeu?” – me pergunta AMPereira, por telefone. “Como?”. “O pacote. Chegou?”. Fazia 3 dias. Na verdade, 6 meses. Em geral acumulamos dívidas que nós mesmos criamos, AMPereira e eu. Os rompantes de generosidade que temos só se torna efetivo quando sedimentado. Debaixo de minha escrivaninha – que é, na verdade, uma mesa de jantar cujas medidas respeita um alojamento universitário – cumprem o papel de uma pequena camada sedimentar dois volumes publicados pelo instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Idênticos. Os mesmos. Coletânea de artigos sobre narrativas de vida, organizada por Maria Suely Kofes cuja persona, amalgamada com a de Mariza Correia fora encarnada por Regina Casé nos tempos de TVPirata, no quadro Piada em Debate. Os dois volumes repousam silenciosos, servindo de superfície para sedimentação, da mesma forma que sedimentam o chão de onde agora escrevo. Estão lá, minha generosidade estancada. AMPereira não é diferente. Até onde sei, seleciona algumas coisas que, abrigadas consigo, eu desejo tê-las comigo. Alucina, me escreve e faz a oferta. Aceito. Separa, guarda, sedimenta. Mas enfim, e mais uma vez, o pacote chegou.

Suspirei quando folheei pela primeira vez uma edição de Naven de Gregory Bateson que não somente porta meu nome, como também uma dedicatória que repete um gracejo feito um ano antes:

O Refrator, se pudesse,/ dizia não à respiração// Mas, como não há jeito,/ de cara azeda, ele prescinde do limão// E dá a língua pro Bourdieu,/ as costas pro nosso passado anão// Come farinha de Euclydes El Corno com Machado/, deixaria até Drummond morrer sem pão// Das chamas do apocalipse só salvaria/ Sua mulher, dois amigos, Vian, Django, um cão.

Sempre ri dos versos que, mesmo odiando, por ventura escreve. E pensando mais um tanto, sobre a desgraça da qual rio que narra os meus dois amigos – que nunca sei qual dos três citados é; Vian, Django ou Kuroguma; ou se são outros dois, o que indifere, pois são poucos -, passo ao segundo volume; o Traité du droit commerciel apliquée aux sujets et produits de la chimie au XIXè siècle, de Theodore Roszencrantz. Grosso, velho, ríspido como um tratado de direito deve ser. Úmidos, cerrei os olhos de leve e ao abri-los, retirei o Roszencrantz do pacote. Os dois livros há tanto prometidos estavam em minhas mãos. Joguei o pacote fora – ou quase. Ao cerrar o punho, o pacote resistiu a ser amassado. Abri-o mais uma vez. Um pequeno ramalhete de páginas ainda residia ao fundo jazendo como promessa não feita, ou ao menos uma promessa íntima que AM havia feito somente a si mesmo, se tanto. Pelo visto, uma promessa pequena que ele mesmo pouco chegou a entender. Rasgado, como fundo do pacote, a capa, a folha de rosto, a ficha catalográfica e as primeiras 26 páginas de 2666. “Chegou o Bolaño?”.

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