“Não reconheço Bolaño em nada disso.”
Já havíamos passado 14 dias de conversas esparsas , por correspondência até a primeira reunião, ocorrido exatamente no Condado Soteropolitano. Nunca soube de como pude chegar até este ponto e, ainda menos como é que ocorreu de uma reunião deste porte tenha chegado a termo entre particulares. Qual o dinheiro, ou se todos teriam gasto duas economias razas como eu. Não saberia descrever muito bem a cena porque, à parte minhas limitações legíveis como escritor, há uma peculiaridade nas prédicas de assembléia que já fazíamos nos últimos anos. Máscaras planas, variáveis, por nomes que nunca perduravam mais que dois ou três meses. Pessoas que se apresentam sempre de costas, outras utilizando letras esparsas mais ou menos aleatórias, mais ou menos dispostas como código para o nome próprio - como T.. Tudo difuso para que não fôssemos ninguém. Não em geral, nem em particular. Em um bar enquadrado sutil e lentamente fora, AMPereira deitou-se num sofá – divã? espreguiçadeira? - ao fundo da mesa, abriu seu 2666, e nós, outros nos sentamos onde fora possível, sem que fôssemos apresentados formalmente “que é pra não quebrar o clima”, Lei da Ordem da Prosa. Não foi necessário nada além do recoste para calar os demais. Num espanhol terrível, com sotaque em nada soteropolitano, leu:
“Un oasis de horror en medio de
un desierto de aburrimiento.
-do que seguiu dizendo-
o negócio aí pra mim é o "oasis de horror", que se aplica bem à vida dos literatos, a Sta Teresa (Kelvin, aqui presente – aponta - escreveu sobre essa epígrafe) - acho que é boa, funciona bem, ancora o livro em um negócio que pode torná-lo comentário da modernidade, ou do gênero romance na modernidade - enfim, tem rendimento isso aqui.”
O silêncio que seguiu me foi desconfortável. Imaginei que teria sido para mais alguém, mas a sensação desmentiu a antecipação. Os demais voltaram ao movimento ordinário, e, ainda que silenciosamente, para outros afazeres, mantendo os olhos voltados para a figura espreguiçada no sofá. Sentei-me ainda mais encolhido, arrastando a cadeira para os fundos de ainda não sei onde, aos poucos. AMPereira virou uma página com desleixo após umedecer as pontas dos dedos com a língua sorrindo, o que curvava sutilmente seu bigode fino e apertava os cantos dos olhos. Mandarim?
“Uma balela o lance do valor artístico ou do desejo do autor: acho que a parte dos crimes, por exemplo, não funciona solo do mesmo jeito que a dos críticos funciona; esse livro impressiona também por sua força enquanto projeto de romance: não funciona do mesmo jeito como cinco romancinhos: é porque ficamos sanduichados entre os críticos e o Von Archimboldi que o negócio se sustenta. Acho muito ridículo esse paratexto cerimonioso - mas isso deve vender livro. Enfatizo isso apenas porque creio que, apesar da fúria dos mercadores em torno de B, o livro é bom.” E Bolaño, imagino, havia se transformado em B. Quase perco o fio da meada e abri o livro esquartejado que portava, momento quando percebo os grossos volumes dispostos à solta pelo ambiente. Versões e edições diversas do mesmo (?) 2666 que eu dispunha, trazidos por cada um dos presentes, livros de diversos tamanhos: alguns excediam as mil páginas. Outros, pareciam ter pouco mais que o dobro daquilo que eu portava. Alguns, todavia, traziam a marca homogênea de não somente serem nitidamente a mesma edição, como traziam na borda das páginas a mancha escura e desagradável de um livro eternamente já manuseado. Eu seguia perdido entre 10 páginas, procurando saber do que é que AMPereira falava, onde se encontrava o momento em que o valor artístico do desejo do autor se tramava, se falávamos de Bolaño ou de Archimboldi. Ruiva e imperativa, T. bateu seu copo, com cautela à mesa e, ao tomar meu exemplar pequeno, mostrou-me a Nota dos Herdeiros do Autor, onde se encontra manifesto o desejo de Bolaño de que o caudaloso de narrativas que os outros portam fossem publicados, por fim, em cinco livros correspondentes às partes do romance. Ali, naquele momento, percebi que os desejos do autor estariam enterrados com ele pois, no elogio da integridade romance lido em bloco que eu mesmo não sabia ser qual era, portava uma sorte de divisão ainda mais acirrada e incompatível com a variedade de volumes que eu assistia. O livro poderia ser dividido em algo muito menor; faríamos uma leitura eleata.
Já havíamos passado 14 dias de conversas esparsas , por correspondência até a primeira reunião, ocorrido exatamente no Condado Soteropolitano. Nunca soube de como pude chegar até este ponto e, ainda menos como é que ocorreu de uma reunião deste porte tenha chegado a termo entre particulares. Qual o dinheiro, ou se todos teriam gasto duas economias razas como eu. Não saberia descrever muito bem a cena porque, à parte minhas limitações legíveis como escritor, há uma peculiaridade nas prédicas de assembléia que já fazíamos nos últimos anos. Máscaras planas, variáveis, por nomes que nunca perduravam mais que dois ou três meses. Pessoas que se apresentam sempre de costas, outras utilizando letras esparsas mais ou menos aleatórias, mais ou menos dispostas como código para o nome próprio - como T.. Tudo difuso para que não fôssemos ninguém. Não em geral, nem em particular. Em um bar enquadrado sutil e lentamente fora, AMPereira deitou-se num sofá – divã? espreguiçadeira? - ao fundo da mesa, abriu seu 2666, e nós, outros nos sentamos onde fora possível, sem que fôssemos apresentados formalmente “que é pra não quebrar o clima”, Lei da Ordem da Prosa. Não foi necessário nada além do recoste para calar os demais. Num espanhol terrível, com sotaque em nada soteropolitano, leu:
“Un oasis de horror en medio de
un desierto de aburrimiento.
-do que seguiu dizendo-
o negócio aí pra mim é o "oasis de horror", que se aplica bem à vida dos literatos, a Sta Teresa (Kelvin, aqui presente – aponta - escreveu sobre essa epígrafe) - acho que é boa, funciona bem, ancora o livro em um negócio que pode torná-lo comentário da modernidade, ou do gênero romance na modernidade - enfim, tem rendimento isso aqui.”
O silêncio que seguiu me foi desconfortável. Imaginei que teria sido para mais alguém, mas a sensação desmentiu a antecipação. Os demais voltaram ao movimento ordinário, e, ainda que silenciosamente, para outros afazeres, mantendo os olhos voltados para a figura espreguiçada no sofá. Sentei-me ainda mais encolhido, arrastando a cadeira para os fundos de ainda não sei onde, aos poucos. AMPereira virou uma página com desleixo após umedecer as pontas dos dedos com a língua sorrindo, o que curvava sutilmente seu bigode fino e apertava os cantos dos olhos. Mandarim?
“Uma balela o lance do valor artístico ou do desejo do autor: acho que a parte dos crimes, por exemplo, não funciona solo do mesmo jeito que a dos críticos funciona; esse livro impressiona também por sua força enquanto projeto de romance: não funciona do mesmo jeito como cinco romancinhos: é porque ficamos sanduichados entre os críticos e o Von Archimboldi que o negócio se sustenta. Acho muito ridículo esse paratexto cerimonioso - mas isso deve vender livro. Enfatizo isso apenas porque creio que, apesar da fúria dos mercadores em torno de B, o livro é bom.” E Bolaño, imagino, havia se transformado em B. Quase perco o fio da meada e abri o livro esquartejado que portava, momento quando percebo os grossos volumes dispostos à solta pelo ambiente. Versões e edições diversas do mesmo (?) 2666 que eu dispunha, trazidos por cada um dos presentes, livros de diversos tamanhos: alguns excediam as mil páginas. Outros, pareciam ter pouco mais que o dobro daquilo que eu portava. Alguns, todavia, traziam a marca homogênea de não somente serem nitidamente a mesma edição, como traziam na borda das páginas a mancha escura e desagradável de um livro eternamente já manuseado. Eu seguia perdido entre 10 páginas, procurando saber do que é que AMPereira falava, onde se encontrava o momento em que o valor artístico do desejo do autor se tramava, se falávamos de Bolaño ou de Archimboldi. Ruiva e imperativa, T. bateu seu copo, com cautela à mesa e, ao tomar meu exemplar pequeno, mostrou-me a Nota dos Herdeiros do Autor, onde se encontra manifesto o desejo de Bolaño de que o caudaloso de narrativas que os outros portam fossem publicados, por fim, em cinco livros correspondentes às partes do romance. Ali, naquele momento, percebi que os desejos do autor estariam enterrados com ele pois, no elogio da integridade romance lido em bloco que eu mesmo não sabia ser qual era, portava uma sorte de divisão ainda mais acirrada e incompatível com a variedade de volumes que eu assistia. O livro poderia ser dividido em algo muito menor; faríamos uma leitura eleata.
Ou, faríamos uma leitura eleata?